Lost: o vazio e a solidão da existência humana

Lost: o vazio e a solidão da existência humana

Não é o que você se torna, mas o que você faz que importa. […] a vida não é sobre títulos ou o suposto sucesso, mas sobre escolhas – o que você escolhe fazer, dizer e com quem você passa seu tempo.

Lost é sobre o sentimento de não se sentir humano, de se sentir perdido diante da sociedade e, consequentemente, vazio. Por meio de seus personagens, o drama aborda o que é ser um humano desqualificado e qual a verdadeira acepção sobre essa premissa. Assim, conhecemos Lee Bu Jeong, uma mulher casada de 40 anos que sente que não fez nada de sua vida, o passado que ela carrega é como um peso em seus ombros que atormenta seus dias, a vida que ela leva não tem brilho ou cor. Não sentindo nenhum sentimento que não um vazio, Bu Jeong tem seu caminho cruzado com Gang Jae, um jovem de 27 anos que não tem nenhuma perspectiva para o futuro, ele sente que não pode fazer nada de sua vida, não compreende os sentimentos que o envolvem e só tem um único objetivo que é ganhar dinheiro. Ao encontrar Bu Jeong, Gang Jae se vê interessado em algo que não o dinheiro, e Bu Jeong sente algo além do vazio.

De forma bastante resumida é disso que se trata Lost, no entanto, sinto que essa sinopse breve que criei e essa resenha não são suficientes para dar conta da imensidão e profundidade que Lost mostra em apenas 16 episódios. Contudo, já quero deixar claro que não é todo mundo que vai amar o drama, para assistir Lost a pessoa precisa está consciente que se trata de uma jornada de reflexão e melancolia, é preciso ter o desejo, a paciência e a empatia de se colocar no lugar dos personagens e sentir o que eles sentem diante do mundo. Quer dizer, quando se trata de Lost não é tão difícil se identificar com muitos dos dilemas interiores que os personagens apresentam ao longo da narrativa. A história é contada, principalmente nos primeiros episódios, como se fosse um grande monólogo, os personagens vão narrando suas atormentações, dúvidas e sentimentos em relação a vida, de forma até mesmo poética, ao mesmo tempo que vamos acompanhando seu cotidiano, seus pequenos gestos, suas posturas, conversas e as ligando com o que o personagem narra. O enredo alterna entre as concepções da Bu Jeong e as do Gang Jae, é como ler um livro, sendo uma história bastante intimista e sutil.

Nos dois primeiros episódios do drama sentimos uma sensação de perdidos, afinal, quem é essa personagem? O que ela faz? O que essa história vai contar? O drama não é didático e não apresenta esses aspectos de forma esmiuçada como vemos na maioria das histórias, ele vai mostrando o personagem lidando com sua vida e aos poucos quem está assistindo vai aprendendo por si mesmo, transparece uma sensação tão realista que é como se você estivéssemos mesmo acompanhando a vida de outra pessoa, isso tornou a história cada vez mais instigante para mim, sem contar que adorei o ritmo da narrativa que, por mais melancólico que fosse, não achei entediante, pois sempre existia um novo sentimento para descobrir, uma nova perspectiva para refletir, um novo momento para pensar e uma incerteza quanto o futuro dos personagens. Lost não é um drama que apresenta um monte de acontecimentos e reviravoltas, a não ser quando se trata do interior dos personagens, mas não deixa, por mais calmo que possa parecer, de denotar muitas turbulências.

Os próprios personagens principais são a demonstração desse emaranhado de sentimentos turbulentos que o drama apresenta ou do vazio de sentimentos. A Bu Jeong, interpretada pela Jeon Do yeon, é uma pessoa calma, honesta e séria, por muito tempo ela se orgulhou de ter vivido uma vida da forma que planejou, achava que tudo estava indo muito bem, seu emprego estava dando certo, estava casada, mas, de uma hora para outra parece que tudo que construiu começa a ruir, assim, ela entra em depressão, se tranca todas as noites em seu quarto, sai do emprego que tinha e passa assumir um trabalho de faxineira.

A vida da Bu Jeong passa a se resumir em cuidar do seu pai e realizar o trabalho que adquiriu, já pensou e tentou se matar algumas vezes, manda frequentemente mensagens de ódio na internet para uma atriz famosa, ela só consegue desejar a infelicidade de quem lhe trouxe infelicidade e se afundar cada vez mais no poço que estar, o sentimento mesmo de não conseguir sair de um lugar e só se sentir parada esperando tudo se tornar pior, o sentimento de tudo que construiu ter sido em vão, de um dia ter ansiado por tudo mas não saber realmente o que desejava. Os comportamentos e concepções que a personagem apresenta são os notórios de uma pessoa com depressão, o drama faz um retrato fiel a meu ver em relação a isso (não que eu tenha lugar de fala pessoal e profissional para falar sobre), quando se trata da personagem é interessante e dolorido descobrir o seu passado e pensar no que ela carrega dentro de si. Ao longo de sua trajetória, em cada episódio, constatamos o quão vazio ela se sente, o drama faz um bom trabalho em mostrar que a depressão não se trata de se sentir sempre triste, mas de muitas vezes não sentir nada, não gostar nem desgostar, de não saber o que está sentindo, de ter uma confusão de pensamentos que o puxam para baixo, de sorrir mas naquele momento não se sentir bem realmente. Com a personagem da Bu Jeong, entramos no psicológico de uma mulher de 40 anos, na sua vida e cotidiano, de uma forma ímpar.

Já o Gang-jae, interpretado pelo Ryu Jun Yeol, é uma pessoa calma, séria e que possui um ar de indiferença no sentido de não perceber seu entorno, ele trabalhou durante muito tempo em um clube para acompanhantes. A crença do Gang-jae se baseia em está disposto a fazer tudo que envolva ganhar dinheiro, o personagem possui um trabalho em que a pessoa o contrata para prestar um serviço do tipo fingir ser amigo de alguém por um dia. No interior do Gang-jae, ele carrega muitas marcas de seu passado, se sente culpado, perdeu o pai muito jovem vendo ele se deteriorar em uma cama de hospital, e levando com isso, a expectativas de vida do personagem que perde o significado da sua existência, ficando sem rumo. Gang-jae se vê muito mais interessado nos aspectos materiais de sua existência como o dinheiro, do que os sentimentos reais que ele não consegue entender e que até mesmo foge e se tranca em uma bolha em relação a eles. Para ele, o dinheiro é afeto e a expressão máxima disso, o dinheiro é um recurso que preenche o vazio que ele sente. 

Gang-jae passa um sentimento de ansiedade, ele tem medo do que é e de como pode se tornar pior, tem medo do que pensa e do que é capaz de fazer, tem medo do futuro, medo de perder, e, por isso mesmo, se sente cada vez mais perdido, deslocado. Assim como no caso da Bu Jeong, é interessante perceber as nuances psicológicas do Gang-jae que carrega um interior de sentimento dentro de si, principalmente no que cerne a sentir que não tem um lugar para ir, onde se fixar, resumidamente, o Gang-jae sabe a fragilidade da humanidade e como tudo pode desaparecer, ele tem medo que no meio de tantas possibilidades de sumir, entre tantas pessoas que ele se torna e fingi ser, tem medo de sua existência desaparecer, pois ele não sabe mais diferenciar com claridade o falso do verdadeiro, o mundo que ele vive o dissocia.

O grande diferencial para mim quando se trata de Lost é a maneira que a obra lida com os sentimentos, nunca assisti um kdrama ou nada em que os sentimentos fossem destrinchados dessa forma e nesse nível de profundidade, nada está explícito e raso. Depois de assistir cada episódio de Lost, eu ficava por horas pensando no que o episódio tinha apresentado, nos sentimentos e pensamentos que tinham sido postos para fora e as reflexões nunca acabavam, ficavam pela semana inteira e estão comigo até agora. Estou falando sério quando digo que ainda hoje penso em algumas das falas e reflexões dos personagens e descubro uma nova faceta, uma nova interpretação, surge na minha cabeça algo como “então foi assim que o Gang-jae se sentiu”, “Ah, era isso que Bu Jeong queria dizer”.  Elas fincam raízes em quem está assistindo.

Outro ponto marcante de Lost é que os diálogos e os monólogos são grande parte da narrativa, eles são colocados como grandes desabafos existenciais, mas não se constroem sozinhos na composição do K-drama, os gestos e posturas também são importantes para compreender a história. Para perceber esses detalhes a atenção do telespectador é essencial, existem as miudezas que às vezes passam imperceptíveis e expressam muito, como o personagem passar a mão no cabelo, o gesto de recolher as mãos, toda a postura corporal e o trabalho sobre o ambiente/espaço da trama é rico. Veja só, as próprias paletas de cores que eles utilizam no começo da história são cores escuras para expressar essa própria tristeza na vida dos personagens, mas quando chegamos no episódio final temos a Bu Jeong sobre uma nova paleta de cores muito mais vívidas, servindo para indicar que a personagem já não vive no mesmo estado de antes. No caso do Gang-jae o próprio corte de cabelo marca a segunda parte da história, a mudança que acontece na postura deles quanto ao relacionamento que está se desenrolando. Esses detalhes são significativos para compor tudo o que está sendo contado, acredito que prestar atenção e entender eles é necessário para imergir em Lost.

Outro ponto que considero imprescindível para a composição do implícito no K-drama e na imersão de sua profundidade é a atuação do elenco, todo o corpo de atuação de Lost é muito bom, os personagens secundários são interpretados por atores que conseguem expressar a emoção certa, em destaque especial para o vôzinho de Navillera que tem o dom de fazer a minha pessoa chorar, já constatei isso. Contudo, meus elogios em destaque vão para a atuação da Jeon Do yeon e do Ryu Jun Yeol, quem assistiu sabe do que estou falando, mas quantas emoções esses dois conseguiram expressar em um único olhar, em um único gesto, eles fizeram sentir como os personagens. Não são atuações exageradas e isso torna elas o mais realista possível, uma simples troca de olhar entre eles já era possível pegar como o personagem estava se sentindo, o que estava pensando. Meus parabéns por me fazerem surtar com cenas simples, mas que significavam muito, pude ver o tormento, o desejo, a tristeza, a raiva, o desespero nas expressões e olhares deles perfeitamente. Os gestos dos personagens foram bem feitos, visto que mesmo depois de Gang-jae cortar o cabelo, ele ainda continuou com a mania de colocar os fios para trás, enfim, pequenos gestos que contribuíram bastante para a riqueza da história e das emoções na mesma.

Ainda no que diz respeito aos aspectos interessantes observados, eu amei como cada título de episódio expressava perfeitamente a mensagem ou a questão central que o episódio queria transmitir, sempre gosto quando fazem isso nos K-dramas, principalmente nos melodramas, pois sinto que o episódio ganha um propósito com esse acréscimo. A partir do título do episódio eu ficava tentando ligar com o que os personagens falavam e com o que era apresentado, gerando outras várias reflexões. Em suma, todos os detalhes técnicos, fotografia, direção, estavam muito bons e expressando o propósito do K-drama, só abrilhantou a experiência.

Ao longo das semanas que assistia Lost,  a coisa que fui mais questionada era se a história era um romance ou se o K-drama tinha romance, logo, não podia deixar de comentar sobre esse elemento no enredo. Quando penso em Lost não classifico o romance como gênero principal da trama, a maioria das pessoas que acompanhou minhas opiniões semanais sobre a história, enquanto o drama estava em lançamento, sabem que eu não estava esperando um romance se concretizar ou mesmo se solidificar, e continuo dizendo que ele não é o elemento central e sim, as dores dos personagens, as doses altas de realidade, as crises existenciais e o cotidiano. Assim, no K-drama o romance surge como um ponto que faz parte da composição realística e cotidiana que a obra apresenta, isto é, os dois personagens se encontram, formam um laço de amizade e eventualmente ao expressarem suas dores um para o outro, ao serem compreendidos, ao sentirem o coração vibrar, os sentimentos românticos vão surgir, o amor vai surgir, afinal, faz parte da vida.

Em Lost o romance não é o protagonista, mas ele ganha um espaço bastante adequado, e para quem ama shippar como eu, propicia muitos surtos para quem está assistindo (aquele tipo de surto com migalhas do tipo “meu deus ele mandou uma mensagem pra ela, ela tem que responder”” kkkk). É muito gostoso assistir as conversas trocadas entre a Bu Jeong e o Gang-Jae, eles possuem uma compreensão silenciosa um do outro impressionante, não precisavam falar tudo claramente com todas as letras, pois eles possuem uma conexão tão forte e nítida que dialogam até mesmo no silêncio e na troca de olhares, foi um encontro de almas mesmo. Eu amo e, justamente por isso, foi impossível não shippar, na verdade tenho um fraco por histórias como Lost que apresentam duas pessoas sozinhas e machucadas que se encontram, dão a mão uma para outra e constroem um lugar confortável e saudável em um laço formado. 

Alguns aspectos de destaque nesse romance sutil que Lost apresenta é a diferença de idade dos personagens e o fato da protagonista feminina ser casada, no tocante a diferença de idade o que ela traz para a história é o contraste de vivências entre A Bu Jeong e o Gang-Jae no sentido que são pessoas de gerações diferentes, mas que vivem solitárias e tristes, essa configuração é um acréscimo na composição dos diálogos e da dinâmica da história. Existe o ar de proibido também nisso, não que isso fosse toda hora escancarado, mas o romance deles tem esse aspecto de ser proibido pela diferença de idade – que o drama mostra que não é um empecilho absoluto, já que mesmo assim os personagens conseguem se comunicar como iguais, quebrando tabu da idade – e também pela personagem ser casada, mas está em um casamento morto em que parece mais duas pessoas desconhecidas dividindo uma casa. Dito isso, não me senti incomodada por nenhum dos dois, a diferença de idade só acrescentou na história e o fato da personagem ser casada eu até esquecia, já que o drama apresenta o cotidiano dela tão bem que é possível compreender tudo sem grandes alardes. Inclusive, adorei a ousadia do drama em solidificar esse romance, vejo como uma ousadia, pois para mim quebrou alguns tabus da sociedade.

Na verdade, o que Lost faz de forma excelente é discorrer sobre a fragilidade humana por meio de todos os personagens, o drama apresenta a discussão em torno do que é ser realmente um ser humano, sobre as pessoas que possuem o direito de serem humanos e aquelas que não possuem, e acaba mostrando que a maioria das pessoas por mais que sejam detentoras de privilégios e estejam no topo ainda podem ser miseráveis. Por mais bem colocado na sociedade que você esteja, ainda pode se sentir deslocado, tudo ainda pode ruir ou sua vida pode ser apenas um prédio que por fora parece tudo está bem, mas por dentro está uma verdadeira merda. A hipocrisia humana é muito bem denotada na trama, não existindo um ser humano perfeito, mas seres humanos cada vez mais deteriorados, que se sentem desqualificados, que são desqualificados e o drama põe até em cheque o que é ser qualificado, afinal, quem é qualificado para ser chamado de humano é realmente?  Será que ser humano são só aqueles que seguem todas as regras da sociedade? Será que me sentindo tão miserável eu tenho esse suposto direito de ser humano?

Enfim, são várias reflexões que surgem em torno dessa acepção e que puxam várias outras vertentes. Para se ter ideia, o drama vai destrinchando cada personagem, desde o marido da Bu Jeong, o primeiro amor dele, a sogra da Bu Jeong, o pai dela, os amigos do Gang-jae, a irmã do melhor amigo do Gan-jae, a atriz famosa, e estabelece reflexões, de acordo com o título do episódio, que passa pela vida de todos eles. Lost faz perceber que todos no fim, por mais diferentes que sejam, estão passando por perturbações internas, assim, é impossível odiar algum personagem da trama, pois você passa a entender a realidade deles e como eles carregam seus fantasmas e dores. Não são personagens perfeitos, são reais, logo atitudes egoístas são notórias aqui, a raiva, o desespero, a inveja, muitos dos sentimentos degradantes estão escancarados na trama.

Dessa maneira, o drama aborda desde do desejo de sermos invisíveis e sumir do mundo, não percebendo nada ao seu entorno; o sentimento de perder alguém precioso; a violência doméstica; as traições; a amargura sentida no âmago de cada ser; a indecisão quanto a um relacionamento; o suicídio; as doenças que acometem pessoas; o cultivo do amor e do amor próprio; o sentimento de solidariedade; a velhice e a juventude; o casamento e seus problemas. De forma geral, todos os vários temas e reflexões que Lost apresenta em seus episódios querem mostrar o vazio e a solidão da existência humana, como muitas vezes nos encontramos em um poço tão à vontade e somos sugados. O final do K-drama foi bastante condizente com todo o intuito da história, por mais seja um pouco aberto e com o aspecto subentendido marcante de Lost, o final mostrou a realidade e o transcorrer a vida, em que dias bons e estrelados surgem e dias ruins existem.

Assim, o dorama propiciou tantas reflexões e aprendizados que é impossível eu expressar tudo neste texto, no entanto, ainda quero deixar uma mensagem final. Todos os personagens de Lost sentem a solidão em suas vidas, algo que se torna cada vez mais palpável no dito mundo que vivemos e nos tipos de seres humanos que estão sendo cultivados. Como em diversas vezes, as pessoas mais parecem robôs reproduzindo vidas semelhantes umas às outras, querendo ser iguais a vidas que elas acham melhor, alimentando expectativas alheias, escondendo todas as suas fragilidades e se afastando de laços reais

Lost evidenciou que é difícil viver sã em um mundo como esse, que se manter na realidade é assustador, que doses de magia também são bem vindas quando carregadas de esperança e sentimentos bons, que às vezes precisamos da carruagem para nos recolher, mas que não podemos viver para sempre nela, uma vida totalmente falsa e robotizada sem propósito e sem saber o que realmente se deseja não é o ideal, como dizia Bu Jeong “Não importa o que nos tornemos, mas o que fazemos”. Um bálsamo faz morada em nossos corações ao notar personagens perdidos e vazios sendo aos poucos preenchidos, lidando com mudanças não de uma maneira radical, mas de forma real. O drama mostrou personagens perdidos trilhando um caminho para se reencontrarem, para conhecerem a si próprios, lidarem com suas dores diárias, aprenderem o significado do amor, a diferença entre a vida e morte, e a singularidade e fragilidade de ser humano.

Lost (2021) contém 16 episódios e está disponível para assistir no IQIYI

Brenda Mendes

Historiadora, professora e criadora de conteúdo digital, está sempre em busca de uma nova história para desbravar e aquecer seu coração, apaixonada por doramas de romance e slice of life, é uma leitora ávida há mais de 10 anos.

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