O Contexto histórico por trás do BL Shine ( de acordo com o primeiro episódio)

Hoje estou aqui para exercer minha formação de historiadora e comentar com vocês um pouquinho sobre os acontecimentos históricos que a trama de Shine, novo BL do MileApo que estreou em 2 de agosto, está inserida. Meu interesse em escrever este post foi despertado à medida que assistia ao primeiro episódio da série, pois em termos de historicidade essa narrativa tem muito a nos contar. Além disso, creio que muita gente pode ter ficado em dúvida sobre o lugar no tempo em que a trama se situa e, saber disso, é muito importante para entender a proposta do enredo.
Em tese, Shine é uma história sobre amor e ideais em meio a um período que resiste à diversidade. Ambientada entre 1969 e 1971, acompanha Trin (Apo), um economista íntegro, e Thanwa (Mile), um hippie de espírito livre, cujas visões de mundo entram em conflito. Tudo muda com a chegada de Moira, uma viúva excêntrica que vive além dos limites da liberdade. Nessa sinopse disponível sobre o BL, percebemos que a proposta da história é abordar o contexto histórico de 1969 e 1971, enquanto desenvolve o amor e a resistência à repressão de dois homens com personalidades distintas. O primeiro episódio da trama constrói bem essa oposição, já que enquanto Trin é recrutado para um cargo no governo tailandês no Conselho Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social do país (National Economic and Social Development Board (NESDB), vemos Thawan cantando, expressando sua liberdade e personalidade em contraste com a rigidez institucional.

O BL começa em uma festa na Tailândia cheia de pessoas com poder aquisitivo que estão reunidas para comemorar a chegada de Neil Armstrong à lua. Isso já oferece uma noção temporal ao telespectador. Para além de um contexto nacional tailandês, precisamos nos situar mundialmente e, nesse sentido, Shine conta uma narrativa que se passa durante a Guerra Fria. Para quem não sabe, a Guerra Fria é um período de 45 anos, que vai desde o lançamento das bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki, em 1945, até o fim da União Soviética, em 1991. Alguns historiadores consideram que, na verdade, seu marco foi a partir de 1947, com a implementação da Doutrina Truman, na qual os Estados Unidos declararam abertamente que “ajudariam” os países ameaçados pelo comunismo.
De todo modo, definimos a Guerra Fria como um período de conflito entre Estados Unidos (EUA) e União Soviética (URSS), já que, após a Segunda Guerra Mundial, esses dois países ascenderam como as duas grandes potências mundiais com diferenças nítidas, enquanto os EUA eram capitalistas, a União Soviética representava o comunismo. Ao longo dos anos, as duas superpotências começaram a competir de forma indireta, isto é, sem desencadear uma guerra mundial propriamente dita entre elas, mas que reverberou em conflitos armados em diversos países do mundo, apoiados por esses respectivos governos. A grande questão é que tanto os EUA quanto a URSS almejavam conseguir zonas de influências e apoio por todo o mundo, de acordo com seus próprios interesses. O conflito estava entre a supremacia americana, capitalista, e a supremacia soviética, socialista, polarizando o mundo em dois campos. Muitos historiadores utilizam o muro de Berlim como símbolo dessa divisão, visto que a construção do muro marcou a separação entre da Alemanha em Alemanha Oriental – sob influência da URSS – e Alemanha Ocidental – sob influência dos Estados Unidos.
A chegada de Neil Armstrong à lua em 1969, marca uma das etapas desse processo, uma vez que, além de uma corrida armamentista em busca de aprimoramento militar, tivemos também a chamada corrida espacial, iniciada em 1957 e se estendeu até 1975, na qual ambos os países ambicionava conquistar e explorar o espaço. Muito além da Terra, foram realizadas pesquisas e contratados profissionais por parte das duas potências para levar o ser humano ao espaço. Acreditava-se que a potência mundial que conseguisse dominá-lo teria seu poderio fortalecido, já que também significava deter a capacidade tecnológica. Depois do envio de satélites, cadela, homem e mulher ao espaço pelos dois países, foram os EUA que, em 1969, enviaram o primeiro homem à lua, Neil Armstrong, por meio do Projeto Apollo.
A chegada do homem à Lua é uma forma de os EUA demonstrarem que o capitalismo é o regime dominante, reafirmando sua influência e poder como supremacia global. O primeiro episódio de Shine deixa isso evidente ao mostrar as imagens do pouso enquanto a frase de Neil Armstrong é pronunciada: “Este é um pequeno passo para o homem, mas um gigante salto para a humanidade”. A comemoração da elite tailandesa diante do feito, em clima de festa e admiração, contrasta com a insatisfação popular, já que, do lado de fora do prédio que a elite comemora, alguns tailandeses protestam contra o governo e contra o capitalismo, que é tão exaltado por aqueles que são beneficiados por ele.
Uma das declarações mais emblemáticas do episódio é quando os manifestantes declaram: “Olha esses caras brandindo armas e enchendo os bolsos tão empolgados com o pouso na Lua que esqueceram que milhões ainda estão por aqui descalços no barro”. O episódio também mostra os manifestantes sendo duramente reprimidos pela força policial, evidenciando caráter excludente e violento de todo o processo. Assim, Shine nos convoca a pensar: que humanidade é essa à qual os EUA e os dirigentes do poder estão se referindo? Quem são os considerados humanos? Será que a chegada dos EUA ao espaço significa mesmo progresso para todos, como eles queriam fazer acreditar? E quão cruel é o gesto de um governo e de uma elite que, fascinados pelo céu e pela promessa de um progresso, escolhe mirar as estrelas enquanto ignora os gritos que brotam do chão?

Enquanto Trinn (Apo) relembra seu passado, o episódio revela mais um elemento do contexto histórico da época, relacionado à resistência popular durante a Guerra Fria. Trinn vivia na França para estudar provavelmente financiado pelo governo tailandês e, durante os cerca de nove anos que passou lá, estabeleceu um relacionamento amoroso com uma francesa. Em determinado momento, os dois entram em conflito, pois, enquanto ela participa ativamente das manifestações em Paris, ele se recusa a protestar, alegando que não pode se envolver. Ela o acusa de covardia. Tudo indica que os protestos retratados são os de maio de 1968.
As manifestações de maio de 1968 começaram na França, quando estudantes da Universidade de Paris, em Nanterre, se mobilizaram em 2 de maio de 1968, contra a separação de alojamentos e foram duramente reprimidos. Com isso, os protestos foram se espalhando por outras universidades e chegaram às ruas de Paris, envolvendo até mesmo as classes trabalhadoras. O que começou como um protesto estudantil desencadeou uma série de manifestações em prol de melhores condições de trabalho e vida. Cabe mencionar que o Maio de 1968 não se restringiu só à França, mas espalhou protestos por diversos países do globo. Dentro do contexto da Guerra Fria, temos nessas mobilizações críticas ao Imperialismo – levando em conta a situação desesperadora da Guerra do Vietnã – e ao capitalismo global, reivindicando liberdade, igualdade e transformações na sociedade.
O movimento Hippie, do qual o personagem Thawan (Mile) faz parte em Shine, também carrega marcas dessa busca por liberdade e critica a alienação e repressão. O movimento hippie surgiu nos anos 1960, questionando o American Way of Life, isto é, o estilo de vida americano, principalmente tendo em conta o envolvimento dos EUA na Guerra do Vietnã. Sendo espalhado por todo o mundo, o movimento é considerado uma contra-cultura, tendo como oposição a guerra do Vietnã, o autoritarismo, a segregação racial, a corrida armamentista, o uso de armas nucleares e a Guerra Fria.
Os hippies têm suas próprias formas de se vestir e se expressar, usando a arte, a música, a espiritualidade oriental e a coletividade como ferramentas de contestação. Valorizavam a paz, o amor livre, a comunhão com a natureza e a rejeição aos valores do consumismo capitalista. Em vez de roupas formais e padronizadas, típicas das gerações anteriores, optaram por peças amplas, coloridas e artesanais. Vestidos longos, calças boca de sino, túnicas, batas indianas, coletes de camurça com franjas e estampas psicodélicas eram comuns. O uso de flores no cabelo, faixas, colares com símbolos da paz, pulseiras artesanais e cabelos longos também era característico.
Em outras palavras, uma ruptura consciente com o modo de vida burguês, que pregava o consumo, a rigidez comportamental e a repressão dos desejos individuais. Thawan encarna essa postura desde sua primeira aparição, usando roupas que destoam completamente da sobriedade militar que marca a existência de Trin em volta do governo tailandês, já que sua família aparentemente faz parte de uma elite política. Seus trajes coloridos, a musicalidade livre e o modo como ocupa os espaços sugerem uma forma de resistência. Percebemos um contraste, o espírito do movimento hippie como contraponto ao autoritarismo, à violência institucionalizada e ao modelo de progresso baseado na negação das liberdades individuais.

O financiamento de ditaduras militares pelos EUA durante a Guerra Fria é um fato. O chamado Terceiro Mundo – que engloba países da África, Ásia e América Latina – foi quem mais sofreu com os impactos dos conflitos desse período. EUA e URSS travaram disputas em territórios como Vietnã, Coreia e outros países, buscando assegurar zonas de influência numa região que, à exceção do Japão, ainda não estava claramente definida dentro da lógica da Guerra Fria. E, para isso, derramaram o sangue de milhões de inocentes. Na América Latina, o Brasil é um exemplo claro dessa influência, principalmente no que diz respeito ao financiamento de regimes militares. O golpe de 1964, que colocou os militares no poder por mais de duas décadas com seu regime repressivo, contou com apoio direto dos Estados Unidos, sendo uma ação logística, estratégica e financeira para conter qualquer avanço popular que desafiasse a ordem capitalista ocidental.
Na Tailândia, os EUA também financiaram a ditadura militar com o mesmo propósito. Em 1969, época que Shine retrata em seu enredo, o país vivia sob o controle firme do marechal Thanos Kittikachorn, cuja liderança era sustentada não apenas por um sistema autoritário interno, mas também pelo robusto apoio político e militar dos Estados Unidos. Embora uma nova constituição tenha sido promulgada em 1968 e eleições organizadas em 1969, essas instituições funcionam mais como fachadas para legitimar um regime que mantinha o poder concentrado nas mãos dos militares, em especial no trio conhecido como “os três tiranos”. Sendo, basicamente, o acúmulo de cargos militares e políticos por Thanom, e suas figuras de confiança: o sogro, general Prapas Charusathien, e seu próprio filho, Narong.
Como vimos, nesse período, a Guerra Fria dava o tom das alianças no sudeste asiático. A Tailândia, ao lado dos Estados Unidos, passa a funcionar como um território estratégico para os interesses anticomunistas na região. Com bases americanas instaladas em seu solo e tropas tailandesas enviadas ao Vietnã e ao Laos, o país se tornou peça importante no tabuleiro da dominação imperialista, sob a justificativa do combate ao comunismo. Cabe mencionar que a Tailândia possui uma localização estratégica, pois está situada no coração do leste asiático, fazendo fronteira com países como Laos, Camboja e Mianmar, e estando próxima do Vietnã. Era como se a Tailândia fosse um posto avançado nos planos estadunidenses de conter o avanço comunista.

Assim, a ajuda econômica vinda de Washington sustentava não só o desenvolvimento de infraestrutura, mas também o próprio regime autoritário, que se vendia como defensor da ordem frente a uma ameaça que muitas vezes servia mais como instrumento retórico do que como realidade palpável. Nesse primeiro episódio, vemos inclusive a existência de um banco de desenvolvimento que tenta recrutar Trinn como funcionário, os interesses econômicos estão acima dos sociais. Na verdade, como alguém que conhece um pouco sobre o período ditatorial brasileiro, vejo semelhanças na busca incessante pelo desenvolvimento que marca a época, fortemente dependente do investimento estrangeiro. Contudo, neste contexto, na Tailândia, o poder militar já tem hegemonia desde da década de 1950, e o que ocorre é uma reconfiguração interna entre os generais e o aprofundamento do autoritarismo com o apoio dos EUA.
O ano de 1969 na Tailândia marca mais uma tentativa do regime militar de revestir sua autoridade com uma aparência institucional. Depois de mais de uma década sob regimes ditatoriais explícitos, os militares, pressionados tanto interna quanto externamente, promulgaram em 1968 uma nova constituição e convocaram eleições gerais para fevereiro do ano seguinte. A iniciativa, no entanto, não representa uma abertura real, mas uma estratégia de contenção e legitimidade.
As eleições de 1969 foram controladas de cima a baixo, já que o Partido Unido do Povo Tailandês (UTPP), fundado por aliados de Thanom Kittikachorn pouco antes do pleito, obteve a maioria dos assentos no parlamento. A oposição, fragmentada e sufocada por anos de repressão, não teve força para disputar o jogo viciado. Thanom seguiu no comando como primeiro-ministro e ministro da Defesa, acumulando poderes e reafirmando a presença do Exército como centro de decisão política. O parlamento eleito pouco influía nas diretrizes do Estado, visto que sua existência servia mais como vitrine para consumo internacional, como uma fachada de normalidade democrática que agradava aos olhos norte-americanos e justificava a continuidade do apoio financeiro e militar ao regime.
Enquanto isso, o país vivia um processo desigual de modernização, já que o crescimento econômico era sustentado por capital estrangeiro, mas acompanhado do aprofundamento das desigualdades sociais. Camponeses, trabalhadores urbanos e estudantes começaram a expressar descontentamento, cada vez mais conscientes da distância entre as promessas do desenvolvimento e a realidade da exclusão, da corrupção e da violência política.
O BL representa bem essa insatisfação da população quanto à concentração de riquezas pelas elites, por exemplo, no protesto retratado no primeiro episódio, podemos observar os manifestantes afirmarem: “Não aos investidores”, “Não às usinas de energia em Huay Kam Saeng” , “Não às barragens!”, “Não aos capitalistas!”. Ao mesmo tempo, em uma reunião, dois representantes da elite econômica e política, conversam, enquanto o aliado ao governo tailandês, declara: “a terra é do exército”, marcando a realidade da concentração de terras nas mãos dos militares e o projeto econômico em volta disso. Cabe destacar que, desde os anos 50, foi implementada uma política que utilizava barragens e infraestrutura hídrica como ferramenta de modernização do sudeste asiático pelo governo tailandês. Essa política gera deslocamento de comunidades locais e impactos ambientais severos, bem como insatisfação popular. Além disso, a mobilização de maio de 1968, citada anteriormente, também serve de inspiração para os tailandeses insatisfeitos que se organizam em movimentos estudantis para lutar por direitos.

É nesse cenário que, em 1971, Thanom executa um autogolpe. Sob o argumento frágil de conter a ameaça comunista, uma carta constantemente usada para justificar medidas autoritárias, ele dissolve o parlamento, suspende a constituição e instaura o Conselho Executivo Nacional, formado por ele, Praphas e Narong. A Tailândia mergulhava, mais uma vez, em um regime de exceção sem disfarces – regime de exceção é quando o governo suspende leis e direitos democráticos para governar com poderes autoritários sob o pretexto de ameaça ou crise, por exemplo o Brasil de 1968 com a implementação do AI-5. A repressão na Tailândia se intensificou, opositores foram perseguidos e assassinados, como no massacre dos “Red Drums” em 1972, onde civis foram queimados vivos sob acusações de simpatia comunista.
Shine começa seu enredo em 1969, mas tem a pretensão de abordar também a época de 1971. Inclusive, estou muito curiosa com isso, já que no primeiro episódio só vemos o contexto de 1969. De forma geral, esse período escancara a continuidade de um projeto político autoritário sustentado não apenas internamente por elites militares e empresariais, mas externamente por interesses geopolíticos estadunidenses. A ditadura tailandesa não foi um desvio momentâneo da democracia, mas parte de uma engrenagem internacional de contenção de qualquer tentativa popular de transformação. O golpe de 1971 não representa uma ruptura, mas a consolidação de um regime que, desde o início, fazia da democracia uma caricatura. Durante a história do país asiático, vemos a alternância entre regimes democráticos e militares, com diversos golpes e intervenções ao longo das décadas. Hoje em dia, embora a Tailândia não seja mais governada por uma junta militar explícita, os militares ainda controlam o poder através da constituição, do Senado nomeado e através de alianças com a monarquia com forte influência nas decisões.
Por fim, Shine traz um assunto muito atual, afinal, a História enquanto um campo de conhecimento sempre fala do presente para o passado. Em um tempo em que os Estados Unidos ainda acredita que podem interferir, a seu bel-prazer, na soberania de outras nações, essa série nos convida a refletir sobre o quanto pouco mudou. Vivemos uma era em que ditaduras militares são vangloriadas e o sacrifício de milhões que resistiram a elas é ignorado. A liberdade e a resistência parecem ser a bússola que norteia essa obra, principalmente levando em conta a Tailândia atual em que a população continua indo a luta e protestando. É marcante como, nesse primeiro episódio, Shine fala da chegada às estrelas, da conquista do universo pelos países poderosos, ao mesmo tempo que destaca o brilho contido em cada pessoa que, lá embaixo, resiste e luta, pessoas que seguem invisibilizadas, excluídas em nome do progresso nocivo que continua ignorando vidas pelo poder.