Love in the Clouds: os ecos do abismo

Love in the Clouds: os ecos do abismo

Como é estar preso/a em um abismo? O que permanece quando a dor ecoa e já não há ninguém para ouvi-la? Como se disfarça a dor para poder sobreviver?

Ji Bo Zai (Hou Ming Hao) sabe muito bem o que é estar em um abismo. Conhece a dor como ninguém. Depois de anos como prisioneiro, conseguiu se tornar um dos guerreiros mais notórios e até derrotar Ming Xian, um dos mais fortes dos Seis Reinos. Circulam inúmeros boatos sobre sua origem e sobre a forma como conquistou suas veias espirituais, poderes cobiçados e temidos. Alguns dizem que ele possui uma porção rara, o Sonho do Paniço Dourado, que fortalece suas veias espirituais. Boatos, intrigas, medo, máscaras, poder e a constante ameaça de inimigos parecem acumular-se cada vez mais em torno do abismo frio que o cerca.

Ming Yi (Lu Yu Xiao) é uma fada alegre e astuta que trabalha em um lugar repleto de mulheres que entretêm e servem os homens do reino. Mas tudo não passa de um disfarce. Por trás da fachada, ela esconde dores profundas e segredos que a consomem. Na verdade, Ming Yi é Ming Xian, o poderoso guerreiro derrotado por Ji Bo Zai. Ao longo da vida, precisou se passar por homem para atender às expectativas da família e do reino.

Durante a luta com Ji Bo Zai, Ming Yi é envenenada e contrai a dor celestial, uma condição que ameaça sua vida. A única forma de sobreviver é obter a porção que está sob o controle de seu inimigo. Assim, ela precisa mentir, disfarçar a dor e se aproximar de Ji Bo Zai. Ele, por sua vez, precisa sobreviver em meio ao desejo de vingança que possui, cercado por inimigos e intrigas.

Entre máscaras, segredos, mentiras e estratégias, os dois caminham sobre o abismo, Ji Bo Zai tentando manter sua força e autoridade e conseguir vingança, Ming Yi tentando salvar a própria vida. Cada eco de dor e cada gesto disfarçado aproxima-os ou os coloca ainda mais em risco, enquanto o abismo entre eles se torna um fio tênue de sobrevivência e destino.

Optei por iniciar esta resenha com a metáfora do abismo na vida de ambos os personagens porque ela expressa, com precisão, o estado emocional que os atravessa. Tanto Bo Zai quanto Ming Yi compreendem o que é viver em um abismo, não apenas emocional, mas, em certo sentido, físico também, já que as limitações e o sofrimento que carregam acompanham suas trajetórias. O abismo simboliza a dor profunda, o trauma e o isolamento, o vazio que ambos sentem diante da própria existência e que, paradoxalmente, também os conecta.

Embora Bo Zai tenha sido prisioneiro no passado e, de fato, conhecido um abismo real, ele continua marcado pela solidão e pelo abandono. Mesmo livre fisicamente, permanece enclausurado por dentro, cercado pelo frio de uma vida sem calor humano. Quão doloroso deve ser quando quase ninguém enxerga sua verdadeira essência? Ou quando é preciso vestir uma armadura porque o mundo já não inspira confiança?

Do outro lado, há Ming Yi, que, por esconder quem é e viver sempre disfarçada, também carrega as marcas de uma infância difícil, repleta de mentiras e aparências. Ela, assim como Bo Zai, aprendeu a sobreviver sob camadas de proteção. Quão difícil deve ser esconder quem se é e viver para corresponder às expectativas dos outros? Quão frio deve ser estar no topo e, ainda assim, sentir-se em um abismo por dentro?

Acredito que Love in the Clouds poderia ter dado mais profundidade a essas histórias de fundo, mas reconheço que o drama sugere bem esses sentimentos, mesmo que não os explore da forma detalhada que eu gostaria.

Apesar de toda essa discussão que construo sobre o abismo, para explicar a trama, ser profunda e melancólica, Love in the Clouds não chega a ser nem tão profundo nem tão melancólico. Grande parte da narrativa se desenrola como uma comédia romântica divertida, que mistura leveza e emoção. Há melancolia, sim, e momentos de tensão, mas nada que busque investigar a fundo o interior dos personagens. Ming Yi e Ji Bo Zai caminham sobre o abismo — enfrentando inimigos e os próprios conflitos —, mas também há espaço para as provocações, paqueras e trocas afetuosas que todo bom enemies to lovers precisa ter.

Como fantasia, Love in the Clouds apresenta um universo rico, com vilões movidos pela sede de poder, planos grandiosos para destruir tudo, amores que se transformam em obsessões, poções que concedem poderes e imortalidade, gatos que assumem forma humana, níveis de magia e torneios entre reinos para provar quem é o mais forte, já que na trama existem seis reinos e cada um tem seu próprio governante. Ming Yi sai do seu reino e em busca de seu propósito vai para o que Bo Zai vive. Mesmo que esse cenário não seja explorado em toda a sua densidade, ele possui brilho e propósito dentro da história.

Assim, Ming Yi precisa enganar Bo Zai para conseguir a porção cobiçada, mas, à medida que se aproxima dele, acaba se envolvendo de verdade. Ela acredita que vai morrer, e ele nem imagina que está sendo enganado e é justamente nessa tensão entre verdade e disfarce que o vínculo entre os dois ganha força e complexidade.

É como se, vivendo em seus próprios abismos pessoais, eles passassem a caminhar juntos pelo mesmo abismo, porque se reconhecem na dor do outro. Mesmo com as mentiras de Ming Yi — e as de Bo Zai também, no início —, as camadas que construíram para sobreviver vão sendo destruídas, uma a uma. Surge então uma espécie de bolha, um espaço íntimo e silencioso em que só eles se entendem, onde ninguém mais pode entrar.

Os preconceitos e julgamentos que alimentavam um sobre o outro vão se dissolvendo, à medida que ambos abrem espaço no coração, até começarem, de forma quase inconsciente, a fazer morada um no outro.

O abismo, antes solitário e doloroso, já não é algo que enfrentam sozinhos, mas lado a lado. E, ainda assim, ele continua sendo uma linha frágil, um limite constante entre o desejo de sobreviver, a sede de vingança, o medo e o amor, todos coexistindo naquele instinto que ambos compartilham: o de não confiar. 

No fim, o cdrama não fala apenas sobre as partes de nós que escondemos, mas também sobre a coragem que confiar exige. Gosto de como o amor de Bo Zai por Ming Yi vai crescendo aos poucos, até o ponto em que ele se torna capaz de fazer qualquer coisa por ela e vice-versa, e de como, no processo, ambos aprendem a aceitar o outro como realmente é.

Se alguém me perguntasse sobre Love in the Clouds, eu diria que o melhor aspecto do drama é a química entre os protagonistas. A conexão entre Bo Zai e Ming Yi é palpável porque é sentida, sentida nas emoções que os atores colocam em suas performances, na dinâmica peculiar entre eles e nessa energia silenciosa que atravessa cada cena compartilhada.

Ao mesmo tempo, o que torna essa relação o ponto mais forte da trama também evidencia uma falta: a de mais momentos entre eles. Essa ausência faz o romance parecer menos desenvolvido do que poderia ser. Love in the Clouds tem muitos personagens secundários, uma trama sobre a luta contra o mal e diversas frentes narrativas interessantes, mas falta equilíbrio entre tudo isso.

Se o romance é o que move a história e o que realmente prende o telespectador, a narrativa perde parte de seu brilho quando as interações entre Bo Zai e Ming Yi não aparecem tanto quanto deveriam. E para quem não gosta de tramas com mentiras, talvez deva passar um pouquinho longe do drama, porque as mentiras de Ming Yi vão se acumulando.

Não que os personagens secundários sejam entediantes, pelo contrário, há figuras cativantes. Conhecemos, por exemplo, a história da rainha e seu romance, que ainda deixa lacunas; Situ Lung (Yu Cheng En), que é um dos personagens mais interessantes (apesar de chato e nem sempre bem inserido); e a amiga, cujo relacionamento no final acaba sendo mal explorado. Há todo um conflito com o mal em curso, mas, ainda assim, eu gostaria que o casal principal tivesse sido melhor integrado a esse enredo. 

Atrelado a isso, acredito também que, como acontece na maioria dos dramas, a história perde um pouco de força na segunda metade, nada drástico, mas perceptível. Ainda assim, a trama se sustenta com reviravoltas interessantes e revelações sobre a origem dos personagens, o que acrescenta novas camadas às suas construções.

E não é um enredo fantasioso sem propósito, sabe? Love in the Clouds carrega também um fundo social. Ele fala sobre pessoas usadas em nome de um poder maior, sobre a ganância e sobre como aqueles que vivem à margem podem ser facilmente descartados, tratados como cascas vazias, como se sua existência só tivesse valor enquanto servem a alguém. Há uma crítica sutil ali, mostrando como a ganância desenfreada, somada ao sentimento de fragilidade e impotência, pode corroer a alma, consumir lentamente o que há de humano.

Voltando à metáfora do abismo, sinto que a maioria dos personagens está presa nele, caminhando entre seus próprios temores e ilusões. Cada um lida com isso de uma forma: uns tentam escapar, outros simplesmente aceitam o vazio e fazem dele morada. E talvez seja justamente essa a ambição de Love in the Clouds: mostrar que, quando alguém vive preso a uma identidade que não é sua, sufocado por sentimentos nebulosos e pela dor que não se dissolve, o abismo deixa de ser apenas um lugar de queda e passa a ser também um espelho. Um reflexo do que ainda precisa ser enfrentado para, enfim, emergir e perceber que mesmo nas alturas mais nubladas, ainda é possível encontrar luz. E, quem sabe, um amor que ecoa nelas.

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Brenda Mendes

Historiadora, professora e criadora de conteúdo digital, está sempre em busca de uma nova história para desbravar e aquecer seu coração, apaixonada por doramas de romance e slice of life, é uma leitora ávida há mais de 10 anos.

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