Second Shot at Love: Quando o álcool é silêncio, afeto e fuga

Seria possível amar plenamente alguém sem antes encarar as próprias dores? Em Second Shot at Love, essa pergunta ecoa em cada gesto contido, cada palavra não dita e é, sobretudo, vista em cada copo tomado e não tomado. Lançado em 2025, o drama sul-coreano estrelado por Choi Sooyoung e Gong Myung não fala apenas sobre parar de beber, mas sobre o que fazemos com as emoções quando escolhemos não anestesiá-las mais, sobre o que fazemos para lidar com os sentimentos que não queremos sentir ou sabemos explicar. Em um país onde o álcool permeia as relações sociais, profissionais e afetivas, o drama se propõe a olhar profundamente sobre a bebida como metáfora daquilo que escondemos e daquilo que tentamos esquecer.
Veja bem, este não é um drama apenas sobre o reencontro com seu primeiro amor e o início de uma nova chance, e nem é uma comédia que aceita o vício em álcool das pessoas usando como alívio cômico, mas sim, uma trama sobre o enfrentamento do que há de mais íntimo e difícil: nossas fragilidades emocionais. Han Geum Ju é uma engenheira mecânica em um ambiente dominado por homens, onde não há espaço para fraqueza, muito menos para vulnerabilidade. Por muito tempo, a bebida foi sua válvula de escape não apenas uma ferramenta social, mas uma forma de dissolver frustrações, raivas e o cansaço de viver num mundo onde ser mulher é, tantas vezes, sinônimo de resistência. Quando decide parar de beber, não se trata de uma “reforma de vida” idealizada, mas de um esforço para encarar o que ficou ali, submerso no álcool: a solidão, os afetos que não deram certo, os erros cometidos no calor da dor.
Mas a bebida continua presente, não nos copos, mas nas bordas da vida. Ui Jun (Gong Myung), o mais famoso (e único) médico da cidade, é um homem que também não bebe, mesmo com seu histórico de alto consumo na juventude. Porém, guarda garrafas de soju cuidadosamente na geladeira. O gesto nunca é explicado em voz alta e é justamente aí que o drama encontra sua força: naquilo que não é dito, mas permanece. Se Geum Ju enfrenta a vida sem álcool, mesmo com recaídas e tensões internas, enquanto Ui Jun parece lidar com a abstinência de uma forma mais contida, quase impenetrável. Ele não consome, mas também não se desfaz, como se aquelas garrafas mantidas fossem resquícios emocionais da juventude, de um trauma, de uma memória. Uma ferida que não se toca, mas também não se cura.
Em ambos os casos, a bebida simboliza o afeto recalcado, a dor não digerida, o medo do real.
O álcool, aqui, não é apenas um tema: é uma linguagem. A presença da bebida, seja num brinde recusado, num copo cheio que não se toca, um copinho após as crianças dormirem ou numa garrafa esquecida no canto de uma geladeira, comunica mais do que muitas conversas. Em Second Shot at Love, beber ou não beber é só o ponto de partida e o que realmente importa é: o que fazemos com o que sentimos, quando não temos mais a bebida como escudo? Ao unir essas duas trajetórias, Second Shot at Love não nos fala sobre o vício em si, mas sobre o que fazemos para sobreviver à ausência, seja a de amor, de escuta, de compreensão, de entender a si mesmo e suas frustrações. Um drama de apenas 12 episódios que fala menos sobre a embriaguez e mais sobre a lucidez que ela tenta evitar, mas sem deixar de mostrar os pontos negativos dessa sociedade que busca o álcool para ‘sanar’ suas dores.

O drama também se preocupa em tecer uma crítica sutil à cultura social do álcool na Coreia do Sul, especialmente no ambiente corporativo. Geum Ju, sendo uma das pouquíssimas mulheres em sua área, é pressionada a participar de jantares com os colegas, onde o soju não é apenas tradição: é um rito de aceitação. Recusar um copo pode ser interpretado como fraqueza ou desrespeito. Sua decisão de parar de beber, portanto, também é um ato político. Um não à lógica do esgotamento, da performance constante e da adaptação forçada. Um sim a si mesma, ainda que hesitante, ainda que doído e disfarçado.
A relação entre Geum Ju e Ui Jun se desenrola nesse terreno ambíguo, onde afeto e autopreservação convivem em constante atrito. Eles não se aproximam como dois personagens que “se completam”. Pelo contrário: são espelhos tortos um do outro. Onde um se cala, o outro provoca. Onde um guarda, o outro tenta esquecer. E é justamente nesse desequilíbrio que nasce a possibilidade de transformação. Não há redenção fácil, nem discursos prontos. Mas há escuta, cuidado e, sobretudo, vontade de tentar de novo, mesmo sem garantias, mesmo com o medo que algo ruim pudesse vir a acontecer novamente.
E não é só entre eles que a bebida se revela como metáfora emocional. Ao redor deles, outros personagens também vivem em torno do mesmo gesto silencioso: o de esconder ou ceder ao álcool. A irmã de Geum Ju, Han Hyun Ju, recorre à bebida com frequência, especialmente nos momentos em que a frustração com a vida adulta, o casamento que não aconteceu, a carreira que não deslanchou, se torna insuportável. Sua relação com Sun Wook, instrutor de taekwondo que parece sempre mais sereno do que realmente é, revela outra camada do drama: o quanto usamos o humor e a rotina como máscara para o vazio, e como a bebida, mesmo em doses pequenas, funciona como cola temporária para relações que evitam encarar o essencial. Eles não têm grandes cenas de ruptura ou confissão, mas são exatamente por isso importantes: representam aquela zona cinzenta entre o hábito e o vício, entre o que se mostra e o que se empurra para debaixo do tapete.
A família de Geum Ju, por sua vez, expressa de forma ainda mais contundente como o álcool se enraíza nas estruturas emocionais. O pai, de forma quase cômica, esconde garrafas como se fossem um tesouro proibido – na estante, no quintal, atrás de objetos – mas a comédia nunca apaga a tristeza. Porque o gesto repetido de esconder revela algo muito maior: a incapacidade de lidar com o tempo que passou, com a velhice que chegou, com a sensação de ter falhado ao perder um grande bem da família. A bebida surge, ali, como um tipo de muleta existencial. Não se trata de embriagar-se até esquecer, mas de manter por perto a ilusão de controle, como se a garrafa escondida dissesse: “ainda posso decidir sobre algo”.

Ui Jun, por sua vez, nunca verbaliza o motivo de manter garrafas na geladeira. Não é uma questão de recaída. Não há cena de confissão. Mas há algo mais forte: a permanência. As garrafas continuam ali, e por mais que ele evite o consumo, sua presença física é constante. Diferente de Geum Ju, que escolhe eliminar os rastros do vício e lidar com as consequências disso, Ui Jun – que convive com as memórias do vício do pai – parece manter o passado intacto, como um congelador emocional. E é exatamente esse gesto, tão simples quanto poderoso, que o distancia de um reencontro pleno com Geum Ju. Ele quer um novo começo, mas ainda guarda símbolos do que passou e que tanto o machucou, se torturando. Ela tenta se transformar, ele tenta preservar e se manter de pé. E talvez seja essa a maior tragédia emocional do drama: o amor pode existir, mas às vezes o tempo interno dos dois não coincide.
Ainda que o drama seja delicado em suas construções, há falhas. Alguns episódios se repetem em dinâmica e temática, e certas discussões são retomadas com pouca variação. A recaída de Geum Ju, embora compreensível, é tratada com certa superficialidade nos episódios finais, como se o impacto emocional pudesse ser suavizado rapidamente. Também há uma tendência a transformar momentos graves em cenas de leveza quase automática, o que pode esvaziar a complexidade do tema. A história do casal secundário, por mais que tenha potencial, por vezes parece orbitando em torno da principal sem aprofundar suas próprias questões: a dor da Hyun Ju, por exemplo, poderia ser mais explorada, assim como os conflitos entre ela e a irmã. O roteiro opta por sugerir, mas raramente mergulha.
Apesar disso, o drama acerta ao não oferecer finais limpos, nem curas definitivas. O último episódio não traz redenção total, tampouco transforma abstinência em salvação. E isso é um mérito porque Second Shot at Love entende que parar de beber não resolve tudo. Às vezes, apenas escancara o que estava adormecido. E amar alguém exige mais do que estar sóbrio, exige coragem de mostrar o que sobrou depois da dor. De viver com lucidez, mesmo que ela doa mais do que o esquecimento.
As atuações de Sooyoung e Gong Myung são de uma maturidade incrível. Sooyoung constrói uma Geum Ju firme e vulnerável ao mesmo tempo, que carrega a vontade de fazer diferente e o orgulho em doses iguais. Gong Myung, por sua vez, cria um Ui Jun meticuloso, que parece sempre saber o que fazer, até o momento em que o passado o desarma por completo. O reencontro entre os dois é mais do que uma chance para o amor: é uma oportunidade para que ambos confrontem quem eram, quem são e quem ainda desejam se tornar.

Ao fim, o drama nos deixa com um pensamento incômodo: talvez todos nós tenhamos nossas próprias “garrafas escondidas”, memórias que não abrimos, sentimentos que não enfrentamos. E talvez a maior prova de maturidade emocional não seja eliminar essas garrafas, mas reconhecer que elas existem, que estão ali, que podem ser um dia enfrentadas. Second Shot at Love não fala sobre vencer o vício, mas sobre o que escolhemos fazer quando a dor não tem mais onde se esconder. Sobre como o amor verdadeiro só floresce quando nos dispomos a ficar, mesmo quando é mais fácil fugir. E talvez esse seja, afinal, o segundo gole da vida: aquele em que se escolhe sentir, sem atalhos, sem anestesia.