A Hundred Memories: Entre o amor e o ódio, o que resta?

A Hundred Memories: Entre o amor e o ódio, o que resta?

Será que é possível amar e odiar uma pessoa na mesma proporção? Será que a nossa cara metade, a “metade da laranja” como dizem, pode ser um amor amigo e não um amor romântico? Veja bem, ao longo de 12 episódios A Hundred Memories nos leva de volta e nos apresenta a uma Coreia do Sul dos anos 80, onde telefones dentro de casa ainda são novidade e os dias, longe da era tecnológica, mostram mais olho no olho, não só os olhos das cobradoras de ônibus que precisam estar atentas a quem entra e quem sai das conduções, mas o olhar atento daqueles que vivem seus vinte anos pela primeira e última vez.

Nesta trama, Ko Young Rye (Kim Da Mi) e Seo Jong Hui (Shin Ye Eun) vivem uma amizade intensa, marcada por laços que oscilam entre carinho profundo e mágoas difíceis de superar. Não é um romance tradicional, tampouco uma amizade comum, é uma relação que nos desafia a entender como é possível alguém ocupar o lugar de melhor amigo e inimigo ao mesmo tempo. A química entre as duas protagonistas não é só visual, é palpável, é a tensão entre quem ama e quem não sabe exatamente o que fazer com tanto sentimento misturado. Elas são a prova viva de que o amor pode ferir e salvar, sufocar e libertar.

Aqui, o cenário da Coreia dos anos 80 é mais do que uma simples ambientação, é quase um personagem à parte. A vida sem internet, sem redes sociais, onde encontros são planejados com cartas e telefonemas raros, revela uma época onde as relações eram menos imediatas, porém mais intensas. O drama capta isso com maestria, mostrando que o silêncio entre as palavras muitas vezes diz mais do que os diálogos em si. A simplicidade da vida cotidiana, os pequenos gestos, os olhares prolongados nas ruas cheias de gente, tudo contribui para uma sensação de nostalgia que vai além do visual. É um convite para pensar no que perdemos com o tempo e no que ganhamos ao lembrar.

Veja bem, a Young Rye é uma personagem construída com camadas que transbordam humanidade. A menina doce e cheia de sonhos carrega o peso das responsabilidades familiares, das escolhas que a vida impõe, e mesmo assim tenta se manter firme, mesmo quando o coração parece prestes a partir, ela ajuda os outros e se mantém de pé. E a chegada de Seo Jong Hui na vida de Yeong Rye é como o fogo que a desafia, que a provoca e que, ao mesmo tempo, a aquece. A presença dela foi quem traz o conflito à tona, a dúvida que não permite que as coisas sejam simples, o “quase” que deixa tudo mais dolorido e mais belo.

Jong Hui é uma alma inquieta, cheia de feridas invisíveis e uma força que não se deixa apagar. Ela carrega uma mistura de raiva e vulnerabilidade, uma jovem que desafia o mundo e a si mesma em igual medida. Ao se aproximar de Young Rye, Jong Hui revela uma profundidade que vai além da superfície, é um coração que busca pertencimento, que teme a solidão e que, apesar das próprias sombras, deseja ser vista e compreendida. Sua transformação ao longo da trama é marcada pela luta interna entre se fechar para não sofrer e se abrir para o amor, mesmo sabendo que ele pode machucar.

O amor entre elas não é linear. Não é feito só de momentos felizes ou declarações óbvias, mas de pequenos gestos, de ressentimentos, de silêncios carregados e encontros que deixam marcas. É nesse terreno instável que o drama mostra que as relações mais verdadeiras são aquelas que aceitam o erro, a imperfeição e a contradição.

Han Jae Pil (Heo Nam Jun) adiciona mais uma camada a essa teia emocional. Ele não é uma simples parte do triângulo amoroso, mas uma peça fundamental para revelar as feridas e desejos de Young Rye e Jong Hui. Jae Pil representa o mundo externo que pressiona, que questiona e que, de certa forma, escancara o que elas tentam esconder até para si mesmas. Com seu jeito calmo e observador, ele traz uma estabilidade que, mesmo assim, é atravessada pelas inseguranças de quem tenta amar e ser amado. Ele é aquele que, em diferentes momentos e mesmo sem querer, desafia as protagonistas a olhar para dentro, a confrontar o que sentem e a entender que crescer dói.

Se formos analisar, a força da narrativa está justamente na complexidade das personagens, que não são nem heróinas nem vilãs, mas pessoas reais tentando entender o próprio coração. Young Rye e Jong Hui não são perfeitas, têm falhas, dúvidas, inseguranças, mas é essa imperfeição que as torna tão humanas e próximas. A amizade entre elas, apesar de tudo, é um terreno sagrado, um espaço onde elas podem ser quem realmente são, com todas as feridas abertas e as esperanças guardadas. É um lembrete de que o amor, mesmo quando não é correspondido da forma que desejamos, pode ser um vínculo que salva, que transforma e que, no fim, nos ajuda a seguir.

E, em determinado momento da vida, ambas renunciam ao amor pelo Jae Pil, cada uma por causa da outra. Essa renúncia não é apenas um sacrifício romântico, mas um gesto de cuidado, de amizade profunda e de compreensão das próprias limitações. É nessa renúncia que o drama mostra que amar nem sempre é possuir, que às vezes o maior amor é aquele que deixa o outro livre para ser feliz, mesmo que longe da gente. E, nesse interim do amor, Jae Pil vive dois relacionamentos distintos, o com Young Rye e o com Jong Hui, que refletem fases diferentes de amadurecimento emocional. Com Young Rye, o amor é marcado pela esperança e pela luta para construir um futuro melhor, mesmo diante das dificuldades. Já com Jong Hui, a relação é mais pautada pela aceitação das feridas do passado e a busca por um amor que seja menos idealizado e mais real. Esses dois lados mostram o crescimento de Jae Pil como personagem, que aprende a lidar com as complexidades dos sentimentos sem a necessidade de controle absoluto.

Mas não é apenas nos personagens principais que o drama mostra sua potência, através das outras cobradoras amigas das protagonistas, como Ho Suk, Jeong Bun, Hae Ja e Ok Hui, do melhor amigo do Jae Pil, Ma Sang Cheol, e dos familiares da Yeong Rye e Jae Pil, o drama nos faz refletir sobre os laços e as famílias que escolhemos criar, não por sangue, mas por proximidade e afeto, especialmente em um contexto social difícil, onde o apoio mútuo é essencial para seguir em frente. Além de mostrar que, mesmo com atitudes que nos machuquem, os nossos pais são os que sempre vão torcer por nós e que, quando tudo aperta, são eles os primeiros a estar lá por nós.

A nostalgia e a juventude da classe trabalhadora são elementos que permeiam todo o drama através dos pequenos detalhes do cotidiano, os desafios econômicos, as esperanças e frustrações de uma geração que precisa se reinventar a cada dia, tudo isso está presente no pano de fundo da história, que se inicia em um estacionamento de ônibus, dando ainda mais densidade e verdade à narrativa.

Visualmente, A Hundred Memories é um trabalho delicado e sensível. A fotografia abraça tons terrosos e quentes, carregados de uma luz que parece sempre estar na penumbra, entre a sombra e o brilho tênue das lembranças. Essa escolha estética reforça o sentimento de que estamos diante de uma memória que é ao mesmo tempo dolorosa e bela, que pulsa com vida e também com ausência.

Ao longo dos episódios, o drama nos guia por duas linhas do tempo — o presente e um salto de sete anos — mostrando que o passado nunca está realmente morto, e que as emoções do ontem podem assombrar ou iluminar o hoje. A Hundred Memories não é só sobre o que aconteceu, mas sobre o que ficou guardado, aquilo que se carrega no peito e que, às vezes, só encontra voz em lágrimas silenciosas ou em olhares que evitam o contato.

Com uma trilha sonora intimista e atuações carregadas de emoção, a narrativa é uma obra que não foge dos sentimentos mais difíceis e reais, entregando uma narrativa que dialoga com quem já sentiu o peso de amar alguém que também machuca. Se você gosta de histórias que exploram a profundidade das relações humanas, que mostram o crescimento emocional sem romantismos fáceis, esse drama é para você.

Apesar dos seus muitos acertos, A Hundred Memories também entra no grupo dos dramas atuais que, por serem compostos de apenas 12 episódios, infelizmente não conseguem resolver todas as histórias e personagens em seu tempo proposto, e com isso, algumas pontas ficam soltas, deixando um gosto de incompletude para quem se atém aos detalhes, entre eles a falta de um diálogo franco entre as protagonistas, questões que envolvam a cobradora que perdeu a perna, o relacionamento da Jong Hui com o irmão da Yeong Rye, da Jong Hui com seu próprio irmão e outros pontos.

No fim, o que fica para refletirmos é justamente o questionamento que Jong Hui coloca em determinado episódio: será que é possível amar e odiar uma pessoa na mesma proporção? A Hundred Memories não oferece respostas simples, mas entrega a coragem de encarar essa contradição, mostrando que o amor verdadeiro pode ser ao mesmo tempo doçura e dor, liberdade e prisão, abraço e distância. E talvez, nessa mistura, esteja a essência de todas as relações humanas.

Alice Rodrigues

Estudante de Comunicação social – Jornalismo, e atuando como social media, criadora de conteúdo digital e assessora de imprensa. Além de amar conhecer novas culturas, é viciada em ler e ouvir inúmeros podcast de assuntos variados. Dorameira desde de 2016, adora acompanhar e analisar narrativas e conteúdos que fazem parte da criação de um drama (elenco, filtros usados, fotografia, simbologia das cenas e outros).

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