The Glory: a dor de voar sozinha e a coragem de construir o ninho

Uma tradução mais próxima do título original do drama chinês The Glory seria algo como “Quando os Gansos Retornam”, é um título que combina perfeitamente com a mensagem da história. Na tradição literária chinesa, os gansos migratórios possuem um simbolismo notório, eles são frequentemente associados à saudade, retorno ao lar e à passagem do tempo (mudanças), esses temas são centrais à jornada da protagonista, Zhuang Han Yan (Chen Du Ling). Como os gansos que retornam ao norte ou ao sul, ela volta a sua cidade natal e a casa de sua família, após ter sido abandonada na infância, já que seus pais a doaram para um casal de amigos no momento que nasceu. Por qual motivo ela foi deixada à mercê por sua família? Qual a sensação de ter um verdadeiro lar? Essas perguntas pairam a cabeça de Han Yan à medida que enfrenta o inverno frio de sua vida.
Zhuang Han Yan é como um ganso solitário, ao contrário da maioria dos gansos, que costumam está em pares para se locomover de um ponto ao outro, ela inicia sua jornada sozinha. Como um ganso corajoso e fora de sua formação, Han Yan retorna em busca do que foi perdido ou do que nunca encontrou, ela precisou realizar sua trajetória de volta para casa sem um bando ou sem um par e acompanhada das dificuldades do inverno que congela suas asas. Sua jornada é uma busca de autonomia, mas também uma tentativa de restauração, de reivindicar o que foi perdido e de encontrar o que nunca teve: uma família/ um lar. Então, como uma estranha em seu ninho, ela retorna com perguntas e com feridas, mas, principalmente, com o desejo de não ser mais um ganso solitário que precisa enfrentar o frio do inverno. Mas, o que fazer quando as expectativas não são supridas? Quando o inverno não vai embora? Será que somente os laços de sangue são o suficiente para construir um lar?
A verdade é que The Glory não se inicia sendo uma história de vingança, mesmo com todos duvidando dela ou a vendo como uma estranha e uma maldição, Han Yan não volta para casa com o objetivo de se vingar, seu único ponto é buscar calor em meio uma vida cheia de invernos devastadores, é romper a solidão de voar sozinha e se reconectar com suas origens. Ela carrega consigo o peso da memória, da perda e da reparação. E seu simples desejo é poder se sentir acolhida ao menos uma vez na vida. À medida que conhece sua família biológica, ela percebe que as coisas são mais complicadas do que poderia imaginar e se envolve em uma trama repleta de injustiças, intrigas familiares e política.
Dessa forma, o retorno dos gansos, ou da gansa, presente no título original também evoca um passado que precisa ser enfrentado, ele está a todo momento se colocando e chamando para ser resolvido. “O retorno” não se refere apenas ao espaço físico, mas a encarar emoções e situações adormecidas ou que estão sem respostas e sem justiça. E é nesse ponto, que a trama de Han Yan se torna uma narrativa de vingança, porque conforme percebe a complexidade das implicações do passado e do presente nesse retorno, ela entende que não pode fugir, se torna uma questão de dignidade, mas também de garantir paz e justiça para aqueles que ela ama, uma busca constante de proteger e de se sentir pertencente. O que ela deseja é construir seu ninho de ervas daninhas e galhos. Um lar autêntico. Um refúgio construído a partir de seus próprios escombros, com o que encontra e, para isso, ela percebe que a vingança vai ser necessária. Não há como fugir.

Han Yan também não consegue fugir de Fu Yun Xi (Xin Yun Lai), o vice-ministro da divisão criminal, quando ele a vê, desvenda todas as mentiras que a protagonista esconde por trás de sua postura impassível. É por isso que, sendo um ganso, Han Yan pode pensar que Yun Xi seja um caçador, um inimigo que está sempre à espreita, mas a relação dos dois se desenvolve bem mais do que isso. Han Yan sabe que Yun Xi não é o ninho que ela procura e ele sabe que não a está recebendo como um ninho, ele não deseja abrigar ela de todas as tempestades e a esconder, mas sim, testar até onde está sua força e esperteza. Yun Xi reconhece Han Yan como sua igual, alguém que ele respeita pela coragem e instinto de sobrevivência, logo, a relação que se estabelece entre eles, inicialmente, é de uma parceria dotada de complexidades.
Partindo do pressuposto que Han Yan é como uma gansa que voa no céu de inverno, Yun Xi pode ser visto como a nuvem que paira nesse céu, ele faz parte do céu que a protagonista voa. Como uma nuvem, decidindo se chove ou não, ele observa antes de cair, calcula, prevê, mede, flutuando sobre o mundo, nosso protagonista mantém distância, é por isso que sua personalidade é vista como fria e calculista. É perceptível como ele é imprevisível e difícil de decifrar, dotado de segredos, está sempre com os sentimentos contidos. Como a nuvem, ele é denso, estático, pesado, cheio de passado. Então, ele está a todo momento, silencioso, testando, contornando, provocando a Han Yan.
Mas, mesmo que pareça indiferente, aos poucos, a gente vai percebendo como o laço dos dois é composto por confiança, que eles vão construindo à medida que se testam, que descobrem segredos um do outro e que lidam com a tensão que permanece entre eles. E essas nuances ficam evidentes na atuação dos dois protagonistas. Todas as emoções difíceis estão refletidas na performance dos atores, em especial na atuação da Chen Du Ling. A relação de Yun Xi e Han Yan é sobre duas pessoas, iguais em lucidez, em vulnerabilidades e nas dores que escolhem não serem ditas, que na vigilância e nas lutas, encontram confiança um no outro. E The Glory nos diz que confiança é um dos sentimentos mais importantes e fortes.
Yun Xi e Han Yan estão sob o mesmo céu. Ele não a impede de voar, mas está sempre próximo o bastante para afetá-la e longe o suficiente para que ela possa alcançá-lo. Como a nuvem, ele não prende, mas também não a abandona. É por isso que digo que o relacionamento deles não é simples, porque mesmo com todas as reviravoltas que trama contém, e ela tem várias, acredite, não é um laço que consegue ser rompido facilmente, mas também não é uma conexão composta por doçura e beleza, ela tem amargor e sentimentos difíceis. Mas possui aquele sentimento de reconhecimento, de dois personagens que fazem parte do mesmo espaço.
Han Yan pode construir suas coisas por conta própria, ela tem força para tomar suas decisões, ela tem suas memórias difíceis e sua liberdade, ela pode construir seu próprio ninho e a todo momento deixa isso claro. Do outro lado, Yun Xi vai sendo tomado por a força que ela emana, ao mesmo tempo que tenta colocar seus planos em ação, ele se vê dividido, e entende que mesmo achando que não tem a capacidade de abrigar, ele abriga porque acompanha o voo da gansa com constância. E talvez seja isso que Han Yan mais deseja, não alguém que construa seu ninho para ela, mas uma pessoa que não a abandone. Mesmo que esse abrigo seja dotado de imperfeições, ele continua ali no inverno frio. Nesse sentido, é impossível não lembrar quando Yun Xi presenteia Han Yan com uma pipa de ganso sem corda, mostrando que não deseja tirar sua liberdade, mas também evidenciando o compromisso que ele anseia firmar com ela. Isso simboliza perfeitamente a dinâmica dos dois, entre a liberdade para decidir seu destino e encontrar um lugar para se firmar e pertencer.

Por isso mesmo, existe uma tensão latente entre os dois personagens principais, The Glory não é uma história com foco em romance, por mais que o laço de Han Yan e Yun Xi esteja lá, tudo isso é notado na sutileza de suas interações, no cuidado que cada gesto é calculado e na tensão crescente entre os dois. Não há nada explícito, o romance se constrói nas entrelinhas, nos silêncios e na trama de vingança que se delineia, somente na reta final da história que ele aparece com mais abrangência, mas não espere nada como um romance de conto de fadas ou muitas cenas pulsantes com declarações fervorosas, isso não há aqui. E talvez a suavidade com que esse romance aparece seja minha única reclamação sobre a trama, gosto da forma que ele não se torna a parte principal da narrativa, não acho que ele deveria ser o elemento central, mas sinto que ele poderia ser melhor delineado nesse implícito. As fagulhas estão lá a todo momento, mas elas podiam ter sido acendidas mais vezes sem tirar a centralidade da trama de intrigas familiares. Sinto que, em alguns momentos, elas são esquecidas.
Se o romance não é um ponto central da narrativa, poderíamos dizer que o drama se resume a intrigas familiares? Não, porque a trama não explora as intrigas de forma vazia, por trás dos segredos e injustiças, existem mensagens maiores, e uma delas é sobre a força dos laços verdadeiros. The Glory deseja nos mostrar que nossos anseios mudam, que é possível sentir saudade do que nunca tivemos e que às vezes nossos piores inimigos estão ao nosso lado. Ao mesmo tempo que mostra não-pertencimento e mágoas, o drama evidencia acolhimento nos lugares mais inesperados e denota como os sentimentos dos personagens são complexos e humanos. Como é ansiar por um amor que sempre lhe foi negado? Como é sacrificar algo que você ama para protegê-lo? Como é sentir que todos os seus esforços resultaram em vazio? E, como é viver com medo e deixar que as injustiças passem a seus olhos?
The Glory convida a todos a viver com coragem, fala sobre os arrependimentos enquanto seres humanos, das decisões difíceis tomadas e de como a covardia consome quem realmente somos e afeta os outros. Talvez seja por isso que o vilão em The Glory é um personagem fujão, que vive escondido em suas próprias atrocidades e que se torna um espelho da falsidade e da manipulação. Inclusive, toda vez que pensamos que ele vai ser pego, o drama engendra uma nova reviravolta, deixando os telespectadores aflitos. Como vilão, ele gera nojo e revolta por sempre fingir ser o que não é. A minha única reclamação em relação a esse elemento é que gostaria de um final mais forte em relação ao vilão.
Assim, The Glory é uma trama de vingança e de intrigas familiares, mas também que mostra como os laços verdadeiros são preciosos, e de como eles nascem da confiança construída com o tempo, o drama nos diz, o tempo todo, que a confiança é mais preciosa do que o afeto. Temos um vilão que mostra um suposto afeto – se esconde através dele – e isso evidencia como o afeto pode ser manipulado, oferecido com segundas intenções ou retirado, mas a confiança pode ser reconhecida com as ações que se repetem com o tempo. Com os gestos silenciosos e com a observação cuidadosa, a confiança não adoece, e sim, cura, e isso é o mais importante para a protagonista da história, a Han Yan, que sempre teve que se proteger diante de um afeto negado, encenado ou inexistente. Confiar é um ato de coragem, mas também um pilar das relações que estabelecemos com o nosso entorno, quão terrível é conviver com quem não se confia, não é?
Isso me faz lembrar do grampo com o formato de uma pena de ganso que Han Yan sempre carrega com ela, sua riqueza simbólica é abrangente e reveladora da jornada da personagem, uma vez que emerge como a representação da coragem e da capacidade de se proteger em um mundo em que ela não pode confiar completamente. Mas também, marca a identidade dela nessa trajetória, uma jovem que se mantém fiel a sua essência, que usa da compostura e da elegância como suas principais armas e que mantém uma resistência silenciosa diante das adversidades. A Han Yan é uma personagem cativante, porque ela emana força, mas também delicadeza, não doçura e subserviência, tal como a pena de ganso que sempre carrega. Ela também está sempre disposta a usar a ponta afiada do grampo como arma para se defender. Ela é inteligente e letal, e inspira os outros a terem sua graciosidade e coragem ao voar sobre os tempos difíceis.

É na Han Yan que toda a força de The Glory se encontra, melhor dizendo, é na potência feminina que o drama tem seu maior valor revelado. Indo além das reviravoltas que prendem e que fazem parte de toda a história, do clima de tensão e dos seus personagens bem delineados, a complexidade que há por trás das personagens femininas e a naturalidade que têm suas vidas demonstradas enche os olhos de um telespectador/a que aprecie narrativas com a centralidade feminina. O que The Glory faz de melhor é mostrar os laços de solidariedades, os amores e as conexões entre as mulheres. O drama não incita a rivalidade feminina como todas as outras narrativas costumeiras, obviamente existem mulheres em lados contrastantes de suas jornadas, que não se dão bem completamente, mas no final, a trama tem a delicadeza de revelar a estrutura maior que faz as mulheres agirem assim, ele não as isenta das más atitudes, mas tampouco deixa de contextualizar seu contexto na época, suas motivações e, principalmente, a presença do machismo.
Aqui, a amizade feminina é enaltecida, afinal, se os homens podem se unir, por que as mulheres não? Por que as mulheres são constantemente incentivadas a irem uma contra as outras? É simples, porque juntas são mais fortes, o drama não só nos diz isso, mas evidencia em cada cena. Han Yan, à medida que delineia sua vingança, estende a mão a outras mulheres, as ergue e ajuda, se torna abrigo e, no momento, que é incentivada a apedrejar, ela vai na direção contrária e clama a liberdade delas. Nossa protagonista sabe como é difícil ser mulher desde o momento que nasceu, quando foi relegada e vista como uma maldição, quando foi exposta a abusos, quando viu as emoções complexas no rosto de sua mãe e quando teve que sobreviver à pobreza extrema. É por isso que a narrativa também questiona as desigualdades sociais, mas também mostra o que há por trás das fachadas. Mesmo uma mulher da nobreza, que parece viver envolta em regalias, sofre com essa estrutura machista.
O drama questiona: Afinal, o que é mesmo uma dama nobre? Será que Han Yan que nasceu nobre, mas foi adotada por uma família pobre e vista como uma maldição, deixou de ser digna? Melhor, será que só as damas nascidas nobres são merecedores de estima? E, se até mesmo essas mulheres de berço, que parecem viver bem, são tratadas como pássaros enjaulados? The Glory desmistifica todo o falso privilégio que possa existir no fato de ser mulher. Desafia as estruturas de poder, já que Han Yan não se submete ao que é esperado dela, e coloca em discussão as normas de gênero, poder e o papel da mulher em um sistema patriarcal.

Assim, ao mesmo tempo que mostra tudo que as mulheres são capazes com sua força e resistência, a trama evidencia como as amarras da sociedade impedem essas mulheres a controlarem seu próprio destino e as fazem crer que não são merecedoras de amor ou de ter seus próprios desejos. O drama expõe que elas sofrem violência, são descartadas, vistas como demoníacas, devem uma obediência cega, sendo influenciadas a atingirem um ideal e constantemente possuem sua existência invalidada, mas o próprio fato de serem mulheres, de viverem com dignidade e lutarem para sobreviver em tal sociedade, já as torna dignas de nobreza, merecedoras das melhores posições e tratamento.
No fim, The Glory é uma súplica a liberdade, a liberdade feminina, e a capacidade de controlar seu próprio destino, sem se tornar vítima, objeto de manipulação e sem ser privada de amor. É sobre a coragem de construir um ninho sendo uma mulher, em uma sociedade que não as quer, a não ser como acessório ou receptáculo do que é dito como bom comportamento. O drama nos diz que ter liberdade sobre seu destino é um direito, e que não significa estar sozinha ou não encontrar o amor, mas de construir um lugar mais justo, em que as asas possam descansar, mas nunca deixar de voar. É sobre ressignificar o que significa um lar, e evidenciar que o ninho, mesmo com suas imperfeições, quando construído cheio de amor pode ser um lar, em que as pessoas que você confia possam ser protegidas e lhe proteger, à medida que se agarram na preciosidade de estarem vivas e unidas.
Assista The Glory no aplicativo/site do Viki ou no WeTV!
Reflexão final: Sabe o que The Glory (2025), drama chinês, me recordou? The Glory (2022), o drama coreano! Não apenas pelo título ser igual, mas também porque Han Yan, assim como Moon Dong Eun, são protagonistas com trajetórias marcadas pela dor e pela perda e transformam esse sentimento em força para buscar suas vinganças. Duas narrativas centralizadas em mulheres fortes que enfrentam seus opressores. Saiba mais sobre o drama coreano The Glory (2022) aqui.